quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

OS POETAS NÃO MORREM. VIRAM ESTRELAS NO CÉU.

“Menino Temporão”
Bartolomeu Campos de Queirós

“Minha necessidade de escrever é resultante de uma falta antiga: não ter vivido a infância no tempo certo. Não conheci a literatura infanto-juvenil no momento da compreensão da fantasia. Naquele tempo eu lia as poucas coisas que circulavam em minha casa:

- A Toutenegra do Moinho, Mulheres de Bronze, as obras de Cronin, alguns livros sobre personagens importantes da história ou exemplos de vida de santos. Cheguei a ter como ídolo São Tarcísio. Usei fita amarela de sua cruzada com custódia bordada na camisa. Mesmo sem pretensões literárias, Lili – cartilha amada por muitos do meu tempo – foi um livro encantado, falando da menina que comeu muito doce e não deixou quase nada para mim. Também Lili foi o meu livro, guardado com as chaves do egoísmo próprio da criança. Minha família, grande, não separava muito as coisas. Tudo era misturado: velório, batizado, bodas, leituras e dores. Hoje escrevo para matar a saudade de um tempo feito de contrários, para dar sentido às fantasias reprimidas, numa casa onde sonhar servia para jogar no bicho. Por ser assim, durante muitos anos, escrevi dizendo ser para mim mesmo. Agora, meio mudado, gosto muito de ter e conhecer os meus leitores.

Não guardo lembranças ternas da minha infância. A alegria está em saber que ela passou, em termos. Estou sempre recorrendo a ela para melhor conviver com as minhas neuroses de adulto. Daí verificar em meus textos tanto a presença da infância vivida como a da infância idealizada. Escrevo muito sobre aquilo que não me foi permitido. Em Ciganos está a minha primeira coragem de falar do vivido. Depois veio Indez e Por Parte de Pai. Sônia Viegas me deu esse impulso ao dizer-me: “Aquilo que não foi esquecido deve ser muito reconsiderado.”

Percebi que só há dois lugares para se falar da gente. Na literatura ou no divã do analista. Da outra maneira vira fofoca. No primeiro, escancara-se tudo, usando ainda da metáfora para deixar o leitor ir mais longe. No segundo, fala-se para a gente mesmo, não se importando de ser dois, ainda com muita pena. Durante algum tempo andei pelos dois caminhos. Não por ter muito a dizer. Foi por aflição. A humanidade sempre me foi muito anônima. Eu só consigo velá-la por meio de um outro ao meu lado. Preciso de uma figura intermediária, mesmo imaginada. Só assim consigo produzir. Sou movido pelo afeto. Depois, trabalhar com a fantasia tem riscos. Qualquer movimento extra pode nos levar a viver “na” fantasia.

Não escrevo “para” crianças. Minha limitação é maior que o mundo e não possuo a ousadia – ou coragem –, ao chegar em casa, de puxar uma cadeira e dizer: “Vou escrever mais uma história para as criancinhas.” Não sei fazer texto de auto-ajuda e nem sou suficientemente generoso para ficar me envaidecendo com minhas faltas. Não sou parâmetro para coisa alguma. Escrevo pelo prazer de escrever e faço o melhor de mim nesse gesto. Se meu texto é eleito pela criança, sinto-me realizado pelo que há de honesto na infância.”



Bartolomeu Campos de Queirós, de 66 anos, segunda-feira 16 de dezembro de 2012, em Belo Horizonte. Mineiro da cidade de Papagaios, Região Central de Minas Gerais, Queirós ocupava a Cadeira 26 na Academia Mineira de Letras (AML). De acordo com nota divulgada pela AML, o escritor, que sofria de insuficiência renal e fazia hemodiálise regularmente, estava internado no Hospital Felício Rocho.

Bartolomeu publicou mais de 40 livros, sendo alguns deles traduzidos para o inglês, espanhol e dinamarquês. Estudioso da filosofia e da estética, utilizou a arte como parte integrante do processo educativo. Cursou o Instituto de Pedagogia em Paris e participou de importantes projetos de leitura no Brasil, como o ProLer e o Biblioteca Nacional, dando conferências e seminários para professores de leitura e literatura. Foi presidente da Fundação Clóvis Salgado e membro do Conselho Estadual de Cultura.

Um dos mais premiados escritores mineiros dos últimos tempos, Bartolomeu foi agraciado com o Prêmio Cidade de Belo Horizonte; Prêmio Jabuti; Selo de Ouro, da Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil; Diploma de Honra da IBBY, de Londres; Premio Rosa Blanca (Cuba); Quatrième Octagonal (França); Prêmio Nestlé de Literatura; Prêmio Academia Brasileira de Letras, entre muitos outros. Era o candidato do Brasil para o premio Hans Christian Andersen de 2012, ao lado do ilustrador Roger Mello.


“A memória é sempre um lugar onde o vivido e o sonhado conversam”
Bartolomeu Campos de Queirós